quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Veto presidencial por interesse público: exigência de ética e negação do arbítrio


Autor: Marcos A. Striquer Soares

Professor de Direito Constitucional na Universidade Estadual de Londrina, PR (na graduação e no mestrado); mestre e doutor em Direito do Estado/Direito Constitucional pela PUC/SP. Fevereiro de 2010.

Dias atrás o país foi dormir com a notícia de um ato do Presidente da República que causou surpresa. Ele vetou parte do Anexo VI que integra a Lei Orçamentária, mais precisamente para retirar algumas obras inseridas no referido Anexo por apresentarem irregularidades. O veto implica na manutenção das obras em andamento, mesmo que irregulares (conforme se manifestou o Tribunal de Constas da União). O Governo fundamenta o veto no interesse público, porque, segundo ele, os investimentos referidos gerarão muitos empregos (ainda mais em ano de eleição), os quais ficariam comprometidos se as referidas obras figurassem no Anexo de restrições.
A questão a se debater aqui, é se o veto por interesse público pode suplantar limites de legalidade ou não. O veto do Executivo deve ser fundamentado sempre, ou na inconstitucionalidade do projeto ou no interesse público. O primeiro fundamento é bastante conhecido pela doutrina, mas o segundo tem poucas explicações.
Contudo, apenas para “trocar idéias” sobre o tema, é possível observar que o dispositivo constitucional que exige fundamentação para o veto (inconstitucionalidade ou interesse público) tem o condão de exigir conduta ética para o Chefe do Executivo. Em artigo publicado em 2003 cheguei à conclusão de que a declaração de nulidade do veto (que em tese pode ser feita pelo Judiciário) por ausência de fundamento significaria devolver o projeto de lei para nova manifestação do mesmo Presidente, possivelmente sem causar a modificação da vontade manifestada. Desse modo, se existe a exigência de fundamentação para o veto e existe, tecnicamente, a possibilidade de declaração de sua nulidade pelo Judiciário, quando da ausência de fundamentação, isto significa apenas que a autoridade tem o dever ético de fundamentar seu veto, de apresentar à nação as razões que encontrou para apor o veto no projeto de lei. Esse dever, portanto, acaba como compromisso ético que tem o Presidente da República perante a nação, mas é dever imposto pela Constituição, que pode ser cobrado (em tese) via Judiciário.
Quanto ao interesse público, especificamente, como fundamento do veto, não encontro outra explicação senão a adequação dos projetos de lei ao programa de governo do Presidente. Em primeiro lugar porque o Legislativo continua tendo total independência do Executivo, seja lá qual for o programa de governo (ou direcionamento ideológico) imprimido pelo Presidente, na condução dos interesses do Estado. Quanto ao Executivo, também tem independência, na tripartição do Poder. Contudo, é o Chefe do Executivo quem foi eleito pelo povo para liderar a condução dos interesses do Estado, ele fez as promessas de governo para o povo e foi o programa de governo dele o escolhido pelo povo para execução dentro do Estado. Isto ficou bem marcado na última eleição presidencial, pois Lula e Alkmin foram bastante honestos nos debates transmitidos pela TV (nos debates transmitidos pela TV e não me refiro às suas propagandas eleitorais), indicando seus programas de governo. O de Lula foi eleito, e os vetos por interesse público apostos por ele hoje têm, em tese, o condão de adequar a produção legislativa (de um órgão que tem independência) ao programa de governo do Presidente eleito. Contudo, é preciso lembrar que cabe ao Legislativo o reexame do veto. O programa de governo do Presidente não é absoluto, pois o Legislativo, no reexame do veto, pode exigir do Presidente, outro programa de governo. Conclui-se daí, que o presidente propõe o programa de governo, mas ele não é absoluto, é o Legislativo, em última análise, que deve dizer se o programa vai ser executado ou não.
Outro problema que precisa ser relatado aqui, problema observado na nossa história recentíssima de nosso país, é que os vetos apostos não são apreciados pelo Legislativo. Eles são engavetados. É um ato arbitrário (arbitrário no sentido técnico, de contrariar norma jurídica, no caso, aqui, contrariar a Constituição) devido a manipulação da Lei pelas autoridades do Estado. Isto tem como conseqüência a prevalência do Executivo sobre o Legislativo, uma vez que quem dá a última palavra é o Executivo e não o Legislativo. É mais uma dentre tantas mazelas em nosso aprendizado de democracia.
Por fim, cabe a análise do veto por interesse público ter cunho político ou legal. No caso observado, o veto presidencial implicou em manutenção de obras nas quais foram constatados vícios legais, envolvendo, inclusive, licitação. Tal veto implica em desprezar os vícios legais (inclusive na licitação), como se eles estivessem sendo sanados (curados), para dar nova vida àquelas obras. Isto não é próprio do Estado Democrático de Direito, seria, se fosse o caso, próprio de um deus (coisa própria do período absolutista que antecedeu a Revolução Francesa). A Constituição impõe o princípio da legalidade, como norma de aplicação imediata, sobre a qual ninguém pode se impor. A licitação não é, por seu turno, exigência de uma lei qualquer, mas da Constituição.
O veto por interesse público é uma exigência de ética, não é janela aberta para o Presidente impor sua vontade ao povo e ao Legislativo, passando por cima da Constituição. Os governantes são passageiros e as Constituições devem prevalecer sobre os governos que se alternam no poder, sob pena da Constituição se tornar lixo e não servir de limite à autoridade de plantão (limite que é quase inexistente, por exemplo, na Venezuela). Antes da Revolução Francesa a vontade da autoridade era limitada pela vontade de Deus. A Revolução Francesa significou o fim desse limite, para o Estado. Surgiu, então, a Constituição como limite. Ela impõe muitas dificuldades para sua alteração e certos pontos sequer podem ser alterados (cláusulas pétreas), tudo para que a autoridade de plantão não se torne permanente e não se transforme em uma espécie de divindade, substituindo a Constituição por sua vontade.
A própria Constituição impõe ao Presidente (lembre-se de que o Presidente jura cumprir a Constituição quando toma posse do cargo) que vete projeto de lei considerado inconstitucional. Se o veto deve servir para inviabilizar projeto inconstitucional, não pode servir para permitir a manutenção de ilegalidade já instalada. O veto por interesse público faz com que o projeto de lei aprovado no Legislativo seja reavaliado por quem o aprovou, fazendo com que a Casa re-avalie o projeto com vistas a fortalecer o programa de governo conduzido pelo Presidente. O veto por interesse público nunca poderá servir, e não se pode aceitar que sirva, de abertura para o arbítrio. Ele é uma exigência de ética.